Como diz o João este é um pequeno texto para a FLANZINE do João Pedro Azul sobre uma prática de futuro: andar a pé.
OS PEDESTRES
Os iniciados na religião antiga de caminhar na cidade guardam uma sabedoria que os prepara para os percursos rodoviários e os atalhos que os encurtam, avançam alerta para o risco e a confusão, conhecem de cor a relação entre os horários e a qualidade do ar. Os pedestres reconhecem-se entre si, cruzam-se com corpos e aparências de espanto, escutam farrapos de conversas de diversa escolaridade, fogem dos golpes da chuva (e dos espirros de lama sob o rodado dos automóveis) ou procuram o mesmo passeio soalheiro quando chega o bom tempo. Os pedestres deixam-se estacar diante da mudança de uma vitrine, entram na frutaria e saem com uma maçã para o caminho, encontram velhos amigos e quem não desejam, chegam despertos ao destino. Os pedestres conservam-se fieis a um exercício ajustado à medida do corpo como a arquitetura clássica e no compasso da respiração produzem, ao mesmo tempo, um “cadavre-exquis” que liberta do ciclo dos pensamentos a que chamamos intenções, preocupações e responsabilidades e nos aproxima do ciclo das estações.
O melhor cinema italiano descreveu com rigor estas figuras: o automobilista impaciente na Europa do pós-guerra e o pedestre que se encontra nos lugares. Jean-Luc Godard recorda a sua descoberta quando, pela primeira vez, assistiu a Viaggio in Italia de Roberto Rossellini: “para fazer um filme basta um casal dentro de um automóvel”. A imagem de abertura de Viaggio in Italia é justamente a de Ingrid Bergman ao volante e um George Sanders sonolento, entorpecido, separados pela linha divisória do vidro para-brisas, enquanto ouvimos o motor do carro. A partir daqui uma série de trajetos automobilizados pontuam o filme (descrevendo a evolução da psicologia da Bergman, do desprezo à empatia diante da descompostura da vida napolitana) e terão resposta, mais adiante, na caminhada a pé, sem tempo, daqueles dois nas ruas empedradas de Pompeia onde descobrem o silêncio da intimidade por reconstruir, a vertigem do tempo, o amor e a morte. E de como a felicidade do conforto e da velocidade que a modernidade impõe são, tantas vezes, uma forma de calar como outrora as orquestras de remedeio se sobrepunham à algazarra nas salas de cinema no tempo do mudo. O pedestre tem alguma coisa do cinema neo-realista como o automóvel tem da Nouvelle Vague, nunca perdendo de vista a relação com quem prefere seguir a pé, como nas conversas entrecortadas em Passion de Godard.
As pernas levam-nos longe e obrigam a saber onde colocamos os pés, atentos aos acidentes do passeio e aos degraus, a ter presentes o arco do passo e a cadência da passada, o desvio abrupto doutro transeunte concentrado no telefone, a aguardarmos o grupo que ocupa o passeio em toda a largura e a demora até surgir, com alívio, a oportunidade de ultrapassar, e voltarmos aos motivos da nossa atenção como espectadores do teatro do mundo. Se Roland Barthes aponta, em Mythologies, que desconsideramos a parte inferior do corpo por nos aproximar da animalidade, ela também relembra a primeira locomoção e uma espécie de comunismo espontâneo. Caminhar não é apenas um exercício salutar com benefícios para as funções cardiorrespiratórias, é uma auscultação da intriga política numa sociedade e uma perigosíssima antropologia das instituições.
João Sousa Cardoso
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Texto publicado na Flanzine n.20 – Corpo, 2019.
Text published in Flanzine n.20 – Corpo, 2019.