

S de serra, S de segredo
Imagens fotográficas, desenhos, fragmentos da realidade, expostos no Museu de Lanifícios da Covilhã, inscrevem a natureza na vida quotidiana. A partir de uma residência na Serra da Estrela, Daniel Moreira e Rita Castro Neves desenvolvem, na paisagem natural da serra, uma estratégia psicogeográfica que se objectiva na forma de uma instalação: o percurso, o caminhar, constituem figuras do retorno à natureza física, a um certo apelo ao movimento do corpo, a uma actividade que não é apenas perceptiva mas fundamentalmente motriz e que se distende no tempo e no espaço.
A construção de uma poética visual que nos dá a ver o mundo depois da fotografia, para retomar as palavras de Robert Smithson, combina materiais que não só representam o real como é o próprio real que se oferece em representação. Pedaços de neve, fragmentos de madeira-bicho, dialogam com imagens de massas rochosas, animais ou a melancolia de estradas que desaparecem no nevoeiro. As fotografias, aparentemente tributárias de uma concepção documental, superam o mero registo, da mesma forma que, reconfigurando os materiais recolhidos durante os percursos, os artistas se afastam da ideia de natureza como pulsão destruidora:
rochedos audazes e proeminentes, por assim dizer ameaçadores, nuvens de trovões acumulando-se no céu, (…) uma alta queda de água de um rio poderoso, etc, tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com o seu poder. (…)permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente omnipotência da natureza.[1]
Nesta espécie de antropologia filosófica, representada em quatro mesas dispostas em círculo, diluem-se as tradicionais oposições natureza-cultura, homem-animal, selvagem-civilizado. Já não se trata de linhas divisórias mas do círculo como iconografia do colectivo, do comum.
A serra não é um jardim, é um espaço sem adorno. No entanto, no projecto Residir é mais um atravessar, é a própria serra que se constitui como cenário privilegiado para a imaginação. Uma inesperada arquitectura da paisagem emerge num território recortado pela acção da geografia humana que assim a redesenha. Operações simbólicas que se deslocam para estados provisórios do silêncio.
Experimentar o espaço requer a audácia de, com ele, nos perdermos no tempo. A serra é um segredo.
Eduarda Neves
[1] Imanuel Kant – Crítica da Faculdade do Juízo. Lisboa: INCM, Série Universitária, 1998, p. 158.
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Texto publicado no livro da Eduarda Neves, NEM – ISTO -NEM – AQUILO (Palimpsesto editora, Lisboa, 2019) e na revista de arte Stellae*.
Text published in the book by Eduarda Neves, NEM – ISTO -NEM – AQUILO (Palimpsesto editora, Lisboa, 2019) and Art magazine Stellae*.