da serra e da terra

curadoria de | curated by Daniel Moreira and Rita Castro Neves
Maus Hábitos, Porto 2020

Artistas / Artists: Alice Geirinhas . José de Almeida . Maria Lino . Pedro Saraiva . Tânia Dinis

da serra e da terra propõe um conjunto de obras de cinco artistas de diferentes geografias portuguesas. É a partir da Serra que a pulsão da terra ganha peso nas suas explorações artísticas, em práticas que assentam numa experiência vivenciada das matérias do rural.
As obras a apresentar são realizadas sob impulso também telúrico, seja por percursos e pesquisas da matéria, pelo uso da terra em cerâmicas, pela observação íntima dos gestos da fogueira ou pela vivência diária na Serra, onde arte e vida se cruzam.
Filme, texto, cerâmica, escultura em madeira e desenho, juntam-se neste projeto, com desenho expositivo realizado pelos curadores – também eles artistas.

“da serra e da terra” proposes a set of works by five artists from different Portuguese geographies. It is from the mountain that the drive of the land gains weight in their artistic explorations, in practices that are based on an experience lived from the rural materials.
The works presented are carried out under a telluric impulse, either through routes and research on the matter, through the use of clay in ceramics, through intimate observation of the fire’s gestures or through daily experience in the mountain, where art and life intersect.
Film, text, ceramic, wood carving and drawing come together in this project, with an exhibition design carried out by the curators – also artists.

Apoio | Support: Saco Azul & Maus Hábitos
ciclo de programação / Programming cycle: “Outros Portos”

da serra e da terra é uma exposição realizada a partir de vivências rurais e matérias da terra, que reúne obras de cinco artistas portugueses de diferentes gerações, género e geografias, e que trabalham sob impulso telúrico. É a partir da Serra que a pulsão da terra ganha peso nas explorações artísticas aqui presentes, assente numa experiência vivenciada das matérias do campo, como a madeira de diferentes árvores, o carvão, ossos e penas de animais encontrados, pelo uso da terra em cerâmica e pela observação íntima dos gestos da fogueira.

O convite para realizar uma exposição no Maus Hábitos, despoletou de imediato a vontade de simultaneamente nos envolvermos com a obra de artistas que nos interessam há algum tempo, e de aprofundar uma reflexão propriamente artística sobre temáticas próximas da preocupação ecológica e de preservação ambiental.

As obras apresentadas sendo pré-existências, no sentido em que todas já existiam e que na sua maioria já tinham sido apresentadas publicamente antes desta exposição – em galerias, espaços institucionais e alternativos, e no Restaurante Salva Almas de José de Almeida, foram selecionadas a partir de um processo de diálogo e “de caminhada” pelos ateliers dos/as artistas. Os seus universos pessoais extremamente consistentes e únicos, permitiram-nos criar uma constelação de obras complexa que, partindo de confrontos e relações, junta filme, texto, desenho, pintura, linóleo, bordado, cerâmica e escultura na mesma sala.

No espaço do Maus Hábitos a construção de um dispositivo expositivo de grandes dimensões, replica a ideia de duas montanhas para receber as obras, propondo um percurso circular assente no uso da madeira e do vidro. É que se antes do mais nos interessa a obra, interessa-nos também pensar como é que a obra pode ser proposta ao seu visitante, num exercício de curadoria que se constrói a partir do diálogo e do contacto com a visão do mundo de cada um/a dos/as artistas. Nesta linha, o televisor onde se apresenta o filme da fogueira é colocado no chão, para que a fogueira possa ser vista de cima, replicando no espaço o plano picado da filmagem; as pinturas apresentam-se numa placa de madeira encostada à parede, remetendo para a ação do seu fazer e para a posição do corpo que pinta; para as figuras em madeira que representam as vítimas do parricídio cometido por Macário, constrói-se uma cama-caixão.

A estrutura em madeira é grande, tão grande que abraça uma das asnas da galeria, como se temporariamente quisesse não apenas habitar o espaço, mas também integrar, fazer parte. Por outro lado, as linhas da madeira clara que percorrem a galeria branca lembram também um desenho simplificado, estabelecendo uma proposta que viaja entre leveza e robustez, entre presença e ausência. Os vários grampos que usámos na construção da estrutura, são usados depois para segurar os vidros que protegem – e criam espaço conjunto para – as obras mais pequenas, numa assunção do processo de construção: construção de estrutura / construção de uma exposição. Esta materialidade da forma de expor reflete e amplifica a relação muito especial que as peças escolhidas têm com o manusear de várias matérias da arte e da vida: o bordar sobre tecidos, o esculpir subtrativo da madeira, o ato de retirar linóleo do linóleo, o óleo sobre a tela, dar forma ao barro, bocados de madeira, ossos e penas de animais encontrados por aí que são enfiados noutros ossos e matérias e unidos com fio ou couro, e ainda os pequenos riscos na superfície do filme Super 8 que, retirando matéria-película, sobrepõe imagens às imagens filmadas: os riscos crepitam sobre a fogueira e acrescem fios aos cabelos da avó da Tânia.

Também, as obras escolhidas inscrevem-se de uma forma ou de outra numa ideia de ancestralidade, ontem como hoje, hoje como ontem. Como algo que atravessando o tempo, permanece vivo.

O que é identificável na presença das lendas (José de Almeida e Maria Lino), nas narrativas do ser feminino (Alice Geirinhas, Maria Lino, Tânia Dinis), na representação das pedras pela atenção às suas formas (Pedro Saraiva) ou pela sua criação (de uma pedra esculpir outra, Maria Lino), na observação dos animais (o humano-touro, a galinhola da Maria Lino), na ligação ao fogo (a fogueira da Tânia Dinis, o barro negro da Alice Geirinhas), na violência e sofrimento humanos (o torturado de Maria Lino, o assassino de José de Almeida), na representação da sexualidade humana (dos relicários-vulvas-clitóris e outras formas de Alice Geirinhas, ou as trompas-tubos inspiradas no misterioso Manuscrito Voynich do início do Quattrocento, em contraponto à mais clássica virilidade de Macário antes de ser São, de José de Almeida).  

Se há aqui uma presença inequívoca de temas e fazeres da ordem do arquétipo, ou de uma ideia de (in)consciente coletivo, as suas concretizações únicas e cruzamentos novos atuam como uma descoberta de algo simultaneamente novo (a obra de arte) mas que, todavia, parece que sempre esteve aqui.

Por entre montanhas, enxadas e machados, bruxas, santos e pastoras, lendas, fogo e animais, é no afiado gume da interiorização das vivências e da representação artística, conhecedora e transformadora, que se constrói, um manual que não será tanto de sobrevivência, mas mais de experiência.

A exposição é um pequeno e primeiro mapa para uma possível imagem do território português, que é o da serra e da terra, mas também o da pedra, da fogueira, do carvão, do barro, da madeira, dos ossos e das penas, como quem vai completando uma lista que se abre para a paisagem.

Daniel Moreira e Rita Castro Neves

Setembro – Dezembro 2020

da serra e da terra em pdf