curadoria de | curated by Daniel Moreira and Rita Castro Neves
Maus Hábitos, Vila Real 2022
Artistas / Artists: Gonçalo Pena . José Cerdeira . Sofia Rocha . Xavier Almeida
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Em geografia, a encosta umbria é a que não é diretamente exposta ao sol, a que habitualmente está voltada a norte, o lugar mais difícil. Nesta exposição, umbrio é o lugar da união organizada de obras de artistas de diferentes geografias, gerações, formações e áreas da criação artística, que nos ajudam a penetrar no recôndito escondido que também é o lugar da sombra.
Umbria reúne quatro artistas que nunca tinham exposto juntos, cujos percursos singulares lhes permitem uma abertura sobre entendimentos outros do mundo, com uma atenção particular ao invisível, a práticas e rituais primitivos, à observação dos animais, ao que está fundo debaixo do solo, à matemática da natureza, a linguagens novas para entendimentos outros, à criação das suas próprias ferramentas de trabalho, à construção de buracos negros, ao conhecimento do universo e à especulação sobre o futuro, à transformação interior que se pode dar quando olhamos a penumbra de frente, e isto a partir de processos de criação e técnicas tão diversas quanto a pintura e a performance, a poesia e a música, a construção de máscaras, cabeçudos e carantonhas, o têxtil, a cerâmica, a fotografia, o vídeo e a banda desenhada. Para esta tarefa percorremos os ateliers dos artistas, surpreendemo-nos com a veracidade dos percursos e das obras, escolhendo com eles as peças, a colocar em diálogo aqui em Vila Real.
Criámos no espaço um dispositivo-expositivo-impositivo agregador: uma parede que se levanta como uma encosta, um mapa e um cenário. Na parede as obras de todos conversam lado a lado, nas suas diferentes linguagens misteriosas e inquietantes, mas familiares (lembramo-nos de como Freud a propósito de arte nos falava do Unheimliche), surpreendendo o espectador com as diferentes autorias, criando relações entre as criações, como as formas que estão no interior do pato que o Gonçalo Pena pintou a acrílico, se aproximam das formas que estão dentro de um cubo representado numa pintura da Sofia Rocha, ou como os olhos do robot-morcego da pintura a óleo do Gonçalo Pena e os olhos da escultura de cara do boi de José Cerdeira são iguais, virão afinal do mesmo lugar?
A colocação das obras na parede verde-terra-escura-e-cinza atira-nos desde logo para diferentes referências: para as formas de expor antigas e também antiquadas, do início e da pré museologia, para as classificações e incoerências do esforçado projeto dos enciclopedistas franceses do séc. XVIII (pode a parede de uma exposição corresponder a uma entrada de uma enciclopédia ilustrada?), para as pranchas de imagens com que o historiador alemão Aby Warburg do início do séc. XX criava relações surpreendentes e compreensões novas no seu atlas Mnemosine, e também remete para os mais contemporâneos mapas mentais e quadros de referências de que lançam mão vários criadores. Mas o nosso trabalho de curadores para lá da seleção das obras, da montagem e do desenho expositivo, surge também com a presença de algumas obras na exposição: pequenos apontamentos na construção de sentidos.
O convite para realizar uma exposição na sala de exposições do Teatro, levou-nos de imediato a pensar a teatralidade enquanto referência agregadora. Em Umbria apresentamos peças que têm a dupla condição de obra artística e objeto ou cenário de performance. A exposição começa com três panos de Xavier Almeida que nos anunciam que “A Noite tinha de cair” e “A luz do dia era demasiado crua”, e que ocupando todo o espaço criam como que um portal de acesso à exposição, uma preparação para o que aí vem, enquanto promessa de revelação de um lado escuro, uma entrada. Ora, estas bandeiras foram criadas como cenário para uma performance onde surgiam dois corpos lentos com cabeçudos feitos pelo Xavier: máscara do teatro popular e ritualístico que há séculos invadem despudoradamente as nossas ruas e o nosso imaginário. O cabeçudo surge de novo no curto vídeo em que o artista regista uma pausa no trabalho (com a curiosa domesticidade muitas vezes presente no atelier de artista, nessa maravilhosa confusão entre trabalho e vida privada, entre Arte e Vida), faz um intervalo e dança. Ou será a dança o trabalho? Também na obra da Sofia Rocha uma noção de objeto performativo se impõe, nomeadamente nos seus “instrumentos” que se encontram em duas caixas desenhadas em madeira, para esta parede: uma caixa contém ossos, vértebras, dentes, paus de árvores açorianas trabalhados, pequenas cerâmicas com formas evocativas tanto da medicina como da alquimia, e outra caixa com peças em cerâmica vidrada. Estas ferramentas – algumas feitas tendo por molde o corpo da artista e encaixando perfeitamente no seu peito, ou na sua testa – integraram e integram ações performativas da sua Clínica do Corpo Subtil, que para a artista provocam um encontro mutável entre a terapeuta e paciente, provocando um “chamamento” e uma “sinergia”. E na parede também vemos uma fotografia em que a artista está em performance no seu estúdio, rodeada de muitas das obras que se encontram em Umbria, e onde uma vez mais se encena uma porta, uma camada, um acesso. Numa pintura de Gonçalo Pena um abutre junto a um outro animal, conversa com um palhaço de casaco verde, numa outra um pato veste uma pele (de cordeiro?) e transforma-se para falar com a sua musa mascarada, sempre com paisagens-cenário por detrás. A teatralidade e performatividade estão também e sempre subentendidas nas transformadoras máscaras para o entrudo que José Cerdeira realiza há anos na Serra da Lousã, com cortiça, paus, cornos de animais e lã de carneiro. Para uma delas, desenhamos um suporte alto, tornando-a figura singular que olha a parede, guardiã da exposição, numa certa dimensão totémica.
Quem olha do exterior do teatro para a galeria, através dos grandes vidros, vê o bastidor da exposição. O avesso da grande parede em bruto revela o processo construtivo do cenário, e a exposição acontece por detrás. Lembramo-nos do ditado: “para cá do Marão, mandam os que cá estão”.
É percorrendo o caminho mais longo e a partir do elogio do lugar da sombra que nos encontramos em Umbria.
Daniel Moreira e Rita Castro Neves
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Fotografias de/ Photos by Carlos Sousa_Saco Azul
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