Miguel Leal

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Ao atravessar as serras entre Arouca e S. Pedro do Sul mergulha-se num mar de eucaliptos. Há momentos em que as suas cores ocupam todo o campo de visão. Aqui e ali, o verde esbranquiçado das novas plantações ou dos eucaliptos que rebentam de toiça depois de um fogo. A acreditar no que me disseram, em muitas áreas já não é economicamente viável cortar estas árvores para fazer pasta de papel. São deixadas ali, ao abandono, à espera do fogo, endémico no seu habitat de origem e que por isso as fará regressar mais fortes e dominantes, uma e outra vez. Não são bem floresta, mas uma outra coisa. Apesar da ilusão do verde contínuo, tentar atravessar a pé estas manchas imensas, amiúde plantadas em terrenos de declive acidentado, é tarefa quase impossível. Tornam-se tão densas e inóspitas que por vezes se mostram impenetráveis. Os solos, já de si pobres, parecem esvair-se lentamente encosta abaixo. A água foi engolida e o ar é seco e com um travo acre. Entre os eucaliptos nem um som, nem uma presença. Para encontrar vozes é preciso procurar outros lugares.

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Ainda a caminho, de carro. As estradas são sinuosas e, se pararmos no meio do nada, abrimos a porta e o ar quente bate-nos no corpo como uma massa pesada. Ouve-se o vento e os insectos. Ao longe, aqui e ali, outros sons, indistintos. Podem-se fazer dezenas de quilómetros sem nos cruzarmos com mais do que um ou dois carros. A pé, pode-se andar o dia todo pelos montes sem ver ninguém. Se fugirmos do circo dos passadiços e das pontes, a maioria dos trilhos, sobretudo à semana, está vazio. Não há ninguém. Muitas aldeias estão também vazias, ou quase. À hora do calor parecem todas desabitadas. De manhã cedo e ao fim da tarde os caminhos animam-se, às vezes com o gado que volta sozinho ou tocado, muito lentamente, por um pastor, a pé ou sentado na sua carrinha, conduzida em baixa rotação. De resto, os únicos sinais de vida são as motosserras que se ouvem à distância, um sino que toca ou o ruído ocasional de um motor em esforço nos caminhos estreitos.

Ao caminharmos sozinhos pelos trilhos, que levam por vezes nomes misteriosos, lembrando velhos usos e histórias, acabámos a falar sozinhos ou a ouvir vozes. Ninguém me convence que as montanhas não são habitadas por fantasmas. A um ritmo que é o seu, lento e inesperado, esses fantasmas falam ou deixam-nos pistas. Podem ser animais, pedras ou plantas. A seu modo todos falam. No entanto, nem sempre é fácil falar ou entender a sua língua. Há uma aprendizagem e isso precisa de tempo.

Para quem conhece bem as montanhas do interior, os sons mudaram. A paisagem também. Quase todos os pontos altos e acessíveis estão hoje tomados pelas torres alvas das eólicas. Se subirmos a um sítio alto é difícil não as ter sempre no horizonte. Mesmo à noite, com os seus pontos vermelhos e luminosos no meio do escuro. O seu som é sincopado e ouve-se a quilómetros de distância. A certas horas do dia, as sombras das hélices confundem-nos, com o seu movimento rápido e repetitivo. Vejo as águias no seu voo lento, lá no alto, e tento imaginar o que muda para elas. Sabemos há muito que já não há terra pura ou intocada, mas este é todo um novo empreendimento de transformação da paisagem que conhecíamos antes. Só descendo aos vales mais profundos e densos as perdemos momentaneamente de vista. Talvez as deixemos mesmo de ouvir. Mas os espíritos que habitam os vales são outros. Mais silenciosos e mais obscuros. Para os outros, mais generosos, teremos de subir um pouco.

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Os fantasmas são evasivos por natureza. Os seus sinais são quase sempre incorpóreos. Um murmúrio, uma sombra, uma pequena marca. Mais raramente, deixam-nos coisas ou oferecem-nos provas da sua existência. Pode ser uma pedra que nos lembra um rosto, um pássaro de grito humano ou uma árvore de configuração peculiar. Desta vez, nos meus passeios encontrei ossos no caminho. De repente, meio enterrada, uma mandíbula. Mais à frente, no dia seguinte, um crânio de cabra, reluzindo no meio das pedras. Assim, sozinho no meio dos montes, são encontros estranhos, são sinais de uma presença.

As serras aqui estão cheias de minas abandonadas. Mais a norte o carvão do filão que vai de S. Pedro da Cova ao Pejão. Por todo o lado, as minas desse ouro negro que ajudou a alimentar a máquina de guerra, a encher os cofres do Estado Novo e a fazer fortunas fáceis. Ao caminhar pelas ruínas das minas de Volfrâmio de Regoufe, percebemos como eram arcaicas estas explorações. O trabalho, feito por gente de fora ou à jorna, deve ter sido brutal. Conseguimos imaginar que tudo, ou quase tudo, deve ter sido feito com base na exploração dos corpos, que arrancavam lentamente o minério das entranhas da montanha. Encontrei por terra a grade que protegia a entrada da galeria principal da mina, aberta directamente na rocha. No seu interior, só consigo caminhar curvado e com a ajuda da luz do meu telemóvel. Ao fim de algumas dezenas de metros sinto-me preso e, receoso, volto para trás. Nem um sinal de meios mecânicos. Tudo parece ter sido escavado à mão.

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Volto à pedreira dos irmãos Valério. Desta vez demoro-me lá em baixo, onde um homem sozinho, montado numa retroescavadora, vai comendo lentamente a montanha. É um processo lento. Nem um décimo daquela pedra se aproveita. O resto é depositado nas escombreiras, mais à frente na montanha. Lá em cima, junto aos escritórios onde se senta a D. Salomé, a pedra vai sendo separada em finas lâminas e cortada em formas variadas. O sistema é ainda arcaico e o trabalho duro. Às vezes, no meio daquelas toneladas de pedra, aparece um fóssil, recordando-nos que é toda a história da Terra que nos fala através daquelas pedras. Esse tempo das pedras não é o nosso, como não são nossas aquelas pedras. Quando muito são sinais, mensagens deixadas para o futuro. Imagens por vir.

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Dou comigo a pensar no avô da Anna, que ainda foi a cavalo para a guerra. Se recuarmos até aos tempos da Segunda Guerra, damos connosco a imaginar a gigantesca máquina técnica que foi necessário montar e depois alimentar durante aqueles anos. No entanto, a cadeia brutalista da guerra começava em lugares inóspitos como Regoufe, onde era extraído o minério que ajudava os ingleses a fazer a guerra. Não muito longe, em Rio de Frades, no jogo de espelhos em que a serra se tinha tornado, eram os alemães que exploravam o mesmo volfrâmio, arrancado da montanha à força de braços. Nesses anos de escassez veio gente dos quatro cantos do país em busca de trabalho nas minas. É difícil imaginar um sistema mais arcaico. Talvez assim se compreenda melhor a verdadeira natureza dessa cadeia infernal, que tudo transforma e tritura. Talvez assim se compreenda melhor que a natureza da técnica é sempre a de uma violência que se exerce sobre os corpos e sobre o mundo.

É fácil chegar da cidade e sentirmos o apelo deste silêncio e desses fantasmas que só gostam da solidão. Apodera-se de nós uma melancolia que só estes lugares nos podem trazer. Trouxe comigo vários livros mas li muito pouco. Quedei-me apenas com dois deles. A elegia do Richard Sennet à manualidade e ao prazer de fazermos as coisas com as nossas próprias mãos e os diários de viagem do Walter Benjamin. Talvez isso também explique a melancolia. Entretanto, sempre que eu voltava à Macieira, a triangulação do telemóvel dizia-me que eu estava no Pindelo dos Milagres.

ml

julho de 2022